Os embates judiciais entre empresas de tecnologia e veículos de imprensa evidenciam um dos dilemas mais complexos da atualidade: como conciliar o avanço da inteligência artificial (IA) com a sustentabilidade econômica da atividade jornalística? Casos recentes, como o confronto entre Penske Media e Google, nos Estados Unidos, mostram que a IA não apenas transforma o modo como consumimos informação, mas também pode ameaçar a base financeira que sustenta o jornalismo profissional e autoral.
Com o crescimento dos sistemas de IA, surge uma contradição concreta. De um lado, temos a democratização do acesso à informação, com resumos rápidos e customizados que aparecem antes mesmo dos links originais das notícias. De outro, esses mesmos mecanismos reduzem o tráfego e prejudicam a audiência dos veículos que produzem conteúdo jornalístico legítimo.
Diante desse cenário, impõe-se uma questão inevitável: o uso de material (dados) jornalísticos no treinamento de algoritmos (IA) configuraria violação de direitos autorais? A resposta ainda é incerta e depende das legislações nacionais. No Brasil, o panorama jurídico tende a ser mais protetivo que o modelo de fair use aplicado nos EUA, que permite o uso de obras protegidas sem autorização prévia dos detentores dos direitos.
Assim, tudo indica que o entendimento brasileiro deve favorecer os titulares de direitos autorais, sobretudo na ausência de uma política pública clara sobre IA. A questão, portanto, é menos teórica e mais pragmática: trata-se de proteger um setor essencial antes que seja tarde.
A União Europeia apresenta uma alternativa intermediária: autoriza o uso de textos e dados para o treinamento de algoritmos, desde que os detentores de direitos tenham a possibilidade de se excluir desse processo (opt-out). Embora coerente no papel, essa solução exige regulamentação precisa e mecanismos de fiscalização. No Brasil, também implicaria uma integração com políticas de defesa da concorrência, evitando que grandes empresas de tecnologia se beneficiem de seu poder de mercado para impor condições desleais ao jornalismo.
Com uma implementação consistente, esse modelo poderia oferecer salvaguardas relevantes ao setor jornalístico. É natural que, ao menos inicialmente, desenvolvedores de IA optem por não pagar por licenças e utilizem somente materiais disponíveis livremente.
Independentemente do caminho adotado, uma verdade é incontornável: bloquear a inovação seria um equívoco, mas ignorar a fragilidade do jornalismo é arriscar o espaço público e permitir o avanço da desinformação. Como é difícil prever os efeitos regulatórios de tecnologias emergentes, o legislador brasileiro poderia estabelecer revisões periódicas da política de IA para não comprometer dados jornalísticos. Esse debate ultrapassa o campo jurídico — é também político e cultural. Um país que sacrifica o jornalismo profissional em nome da conveniência tecnológica corre o risco de substituir informação qualificada por ruído digital.
Pedro Henrique Batista – Pesquisador Sênior, Instituto Max Planck para Inovação e Concorrência (Munique, Alemanha)

*Fonte: Tele.Síntese


